Meia Amazônia Não

Meia Amazônia Não
50% da Amazônia é quase zero, quero a Amazônia por inteiro.

domingo, 25 de maio de 2008

"LIXO"

Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.

- Bom dia...
- Bom dia.
- A senhora é do 610.
- E o senhor é do 612.
- É.
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
- Pois é...
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
- O meu quê?
- O seu lixo.
- Ah...
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve se pequena...
- Na verdade sou só eu.
- Mmmmm. Notei também que o senhor usa muita comida em lata.
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
- Entendo.
- A senhora também...
- Me chame de você
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas também tenho visto alguns restos de comida em seu lixo, champignons, coisas assim...
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...
- A senhora... Você não tem família.
- Tenho , mas não aqui.
- No Espírito Santo.
- Como é que você sabe?
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito santo.
- É. Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é professora?
- Isso é incrível? Como foi que você adivinhou?
- Pela letra no envelope. Achei que fosse letra de professora.
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
- Pois é...
-No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
- É.
-Más notícias?
-Meu pai. Morreu.
-Sinto muito.
-Ele já estava bem velhinho. Lá no sul. Há tempos não nos víamos.
-Foi por isso que você começou a fumar?
-Como é que você sabe?
-De um dia para o outro começaram a aparecera catreiras de cigarros amassadas no seu lixo.
-É verdade. Mas consegui parar outra vez.
-Eu, nunca fumei.
-Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimidos no seu lixo...
-Tranqüilizantes. foi uma fase. Já passou.
-Você brigou com o namorado, certo?
-Isso você também descobriu no lixo?
-Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
-É, chorei bastante, mas já passou.
-Mas hoje ainda têm uns lencinhos...
-É que estou comum pouco de coriza.
-Ah.
-Vejo muitas revistas de palavras cruzadas no seu lixo.
-É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
-Namorada?
-Não.
-Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
-Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
-Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
-Você já está analizando o meu lixo!
-Não posso negar que o seu lixo me interessou.
-Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a posia.
- Não! Você viu meus poemas?
- Vi e gostei muito.
- Mas são muito ruins!
- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. eles só estavam dobrados.
- Se eu soubese que você ia ler...
- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
- Acho que não. Lixo é domínio público.
- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra da vida dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
- Bom, aí você está indo longe demais no lixo. Acho que...
- Ontem no seu lixo...
- O quê?
- Me enganei, ou éram cascas de camarão?
- Acertou. Comprei alguns camarões graúdos e descasquei.
- Eu adoro camarão.
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
- Jantar juntos?
- É.
- Não quero dar trabalho.
- Trabalho nenhum.
- Vai sujar a sua cozinha.
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
- No seu lixo ou no meu?

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Eu Gosto de Gente

Eu gosto de gente que canta alto sem perceber quando está com fones de ouvido. E na rua. Eu gosto de gente que sorri para grávidas. Eu gosto de gente que derruba coisas. Eu gosto de gente que ri das minhas piadas.

Eu gosto de gente que gosta de cozinhar. Eu gosto de gente que para no meio da rua para cheirar uma flor que se debruçou sobre algum muro. Eu gosto de gente que dá uma ajeitadinha no cabelo no espelho do elevador ou no reflexo dos vidros dos carros parados – e disfarça.

Eu gosto de gente que tem teorias. Pode ser sobre qualquer coisa, não faço muita questão. Eu gosto de gente que usa gírias ou expressões totalmente deslocadas.

Eu gosto de gente com senso de humor suficiente para ver um conhecido na parada de ônibus e, em vez de gritar “ô, fulano!”, correr para alcançar silenciosamente o amigo e andar a seu lado quietinho até o coitado tomar um susto, do tipo “oh, é você!”.

Eu gosto de gente que conta histórias nas quais elas *não* se dão bem no final. Eu gosto de gente que nasceu extasiada, e das gente quietas também, cada um tem o seu brilho.

Eu gosto de gente que anda olhando para trás e acaba batendo no vidro. De gente que fala cantado. De gente que diz o que a gente não espera. De gente que ouve músicas muito diferentes umas das outras. De gente que usa camisa dos de ídolos. De gente com sotaque, de qualquer lugar.

Eu gosto de gente que observa em silêncio e ri alto. Eu gosto de gente que olha para o céu quando passa um avião. Eu gosto de gente que se maravilha. Eu gosto de gente que faz comida para mim.

Eu gosto de gente que brinca com os bebês. Eu gosto de gente que escreve em mais de uma língua na mesma frase, misturando os termos. Eu gosto de gente que senta em uma mesa de bar e bebe comigo, COCA-COLA.

Eu gosto de Gente.